Era uma vez, faz muito, muito
tempo, um castelo encantando, perdido no meio de altas verduras e céus
coloridos onde viviam todas as espécies de criaturas mágicas que a uns olhos
desprovidos de imaginação eram apenas histórias.
Era assim que a criança me
começava por contar aquilo que ela jurava não ser mais uma história mas um
lugar imutável no tempo. Ainda hoje me sento a ouvir a criança porque há dias
em que a sua falta começa a pesar.
A criança tem, no entanto, razão.
Essa vila erguida no alto é a
minha primeira recordação do lugar místico em que procurava viver. A sua
descoberta, ao longo de todas as visitas, pareceu-me sempre um retorno a uma
casa maior onde para além de largas pedras anciãs eu via a magia que faltava no
quotidiano empobrecido de beleza pelas altas casas brancas e pelo alcatrão
negro adjacente.
Sempre que os meus pés, ainda pequenos, ultrapassavam o arco de entrada era como se pelo contrário uma larga travessia tivesse tido lugar. Uma travessia que havia atravessado as brumas trazidas pelos ventos do rio que beijava os pés da Deusa.
E a Deusa respirava naquelas ruas, suspirava naquelas ruas –
nas suas encruzilhadas e compridas inclinações – sempre ao ritmo lento das
danças naturais pois que a música provinha apenas da vida sustida entre as
paredes e o teto azulado do vilarejo.
Aos saltinhos curtos e corridas animadas encontrava sempre
um esconderijo onde me perder. Uma gruta colorida apetrechada de água escura e
misteriosa escondia os inúmeros monstros que guardavam as passagens para outros
mundos – mundos esses a que ninguém devia ir, pois que o mundo onde se
encontravam era já poderoso o suficiente. Uma arena redonda, ou um quanto oval,
quem sabe o círculo onde moravam as fadas que espalhavam no infinito avistado
das grandes torres os amarelos e laranjas que em ondas e remoinhos se
misturavam com o azul profundo que se despedia de mais um dia. Um poço no
centro da praça principal que concedia desejos e cuja água conferia milagres,
que era tão fundo que tocava os confins do mundo.
Lembras-te? – pergunta-me a
criança; eu sento-me e no meio da azáfama lembro-me devagar para poder saborear
cada momento da minha terra mágica.
Cada despedida sabia-me no peito como o regresso ao mundo
paralelo sem graça que eu tinha de suportar para me ser concedida a graça de
voltar a atravessar as brumas. – Tudo era uma demanda.
Ao chegar a casa entretinha-me
ainda a imaginar quantas danças teriam lugar pela noite. Quantos raios de lua
seriam necessários para que aqueles que ficavam lá se sentissem perto o
suficiente da Deusa. Quantas as luzes e os cânticos e os banquetes se fariam
nas frestas das pedras que formavam aqueles lugar e convencia-me, sorrindo, que
eram muitos e que ninguém os sabia porque ninguém detinha o que era preciso no
olhar.
O que era preciso era a memória da criança que nunca se
esqueceu ou separou realmente daquele lugar. – guarda a sua Avalon como Artur
guardaria a sua Excalibur e isso parece ser o suficiente.
Hoje, ao calcorrear as esquinas
da vila, sei que ela cresceu no mesmo passo que a criança. – A vila parece mais
uma senhora imponente: a Deusa da criança materializada ao expoente da beleza
nos seus quatro elementos naturais. Uma mulher de cabelos longos e roupas
escuras e duras cujos pés dividem o pequeno mar que em frente a si se estende.
Uma feiticeira que sopra ventos ferozes e me levanta os cabelos ou cuja mão
dourada acaricia os seus caminhos e me doira a pele.
Acima de tudo, uma mulher silenciosa que me deixa espaço
para ser a criança novamente. Apetrechada da sua memória e da sua visão.
A memória da criança vive enquanto a sua Avalon viver – e aí o carinho pela vila escondida lá no alto. Isto não foi a criança que me disse. Foi cada memória de mim mesma encerrada em Monsaraz, como amiga e guardiã que cresceu e me deixou crescer.
A criança, se pudesse falar,
diria apenas que ao pôr-do-sol, e se vires com atenção, as fadas saem para
dançar e a Deusa, deliciada, as aplaude prosperando em alegria.
Crónicas do Alto da Vila, por Inês Valadas
Sem comentários:
Enviar um comentário