O HÁLITO DO RIO
O hálito do rio é mais suave, o cheiro menos intenso, menos
húmido, a sua voz menos marulhada e grossa que a do mar. As ondas quase não se
notam e chegam sem pressa, a desfazer-se aos nossos pés como que a pedir
aconchego.
O sol prepara-se para
se esconder, lá atrás da ossatura da serra de Portel e deixa no silêncio
líquido do Alqueva, uma poalha incandescente, brilhante, a formar um caminho de
luz. Consulta-se o relógio. A tarde avança, faz estender as sombras dos toldos
de colmo, em fatias enormes que ocupam desprevenidas e sem autorização as
toalhas estendidas da vizinhança. O nadador-salvador saiu, há pouco mais de dez
minutos, deitando um último olhar à beira da água, onde algumas crianças
chapinham numa algazarra e fogem de baleias e jacarés, figuras que inventaram,
num prodigioso jogo de alucinações.
Ao largo, um rebanho
pasta pachorrento. O som dos chocalhos forma uma melopeia cadenciada que se
propaga no ar e chega até nós, como o acompanhamento natural de um cante de
muitos séculos. Corre uma aragem aromatizada de giestas, do restolho perfumado
do fim do verão.
No restaurante, o
empregado acendeu umas velas que colocou sobre as mesas num convite a sugerir jantares românticos. Um barco
inchado de gente chega à marina. Os passos ecoam ligeiros pelo passadiço de
madeira. Lá em cima o castelo ilumina-se com uma luz amarela e num desmaio
propositado o sol esconde-se para lá do cerro.
A um canto da
esplanada, alguém ficou como eu, de olhar parado a fixar a ilha em frente,
remoendo pensamentos, desfiando saudades, o livro abandonado e aberto sobre a
mesa.
Vim despedir-me da
praia. Do azul, deste areal acastanhado e desta mancha verde colocada logo
atrás. Das bolas de Berlim e dos gelados de cone. Dos pinchos e tapas que
nuestros hermanos trazem para a merenda, do sotaque de francês arranhado com
que alguns emigrantes nos brindam.
Algumas décadas atrás,
tudo isto era privado, como se o rio pertencesse a alguém. Como se aquele
senhor, dono de tantas terras, fosse também senhor das águas. Nem pescar se
podia!
Agora não calculam como aprecio esta liberdade de risos e
traquinices à solta, das gargalhadas fáceis dos miúdos e dos seus mergulhos de
chapão, no ventre aprisionado do rio.
Se fosse possível,
compraria uma onda gigante da Nazaré e bem dividida em muitas parcelas, viria despejá-la, na próxima época, aqui na praia fluvial de Monsaraz.
CRÓNICAS DO ALTO DA VILA
01.10.2017
(fotos: António Caeiro)
(fotos: António Caeiro)
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