Um retrato desconhecido
Nas faces guarda os sulcos
marcados a memória das colheitas de uma vida. E uma vida não chega apenas para
contar das colheitas os dias em que o sol ainda não nascia em seus olhos de
amêndoa, vespertinos. Hoje deixam-se descair como a noite; um rasgo de luz
sobre o breu das colinas a silenciar os animais que comungam da aragem.
Soubéssemos nós da força dos
braços, de como ainda dele se padecem e se levantam, quais riachos, pequenos e
suaves ainda as agruras do fado descem. Sabe-se tão pouco desta terra
intensivamente arada, mãos feridas e saradas a cada nova madrugada, porque a
madrugada é o tempo de nascer e prontamente ser e não existe ser que nesta
Terra não viva.
Na nossa terra vive
até aquele que jaz – No eco das vozes que as paredes guardam, regozijando-se,
por conseguirem então cantar.
Cantam paredes e cantam vozes que contam mais do que há para
contar; sabem da história os remorsos e as felicidades de a história lhes ter
dado morada à beira-rio.
Que é este azul cristalino e
profundo que se estende, senão lágrimas recusando sal de quem da beira do
Alqueva fez o seu lugar? – Lugar mais que lugar, lugar de ficar! Pois que todos
que o visitam o querem consigo levar e não existe quem o leve tão
grandiosamente quanto aqueles que o sabem amar.
Amor. O amor denota-se nas mãos
engelhadas, cansadas de dar forma ao pó original, para lá do amor um grande e
doloroso amar. – nunca se cansa de contemplar a sua obra e a sua obra é já
doutros para (nunca) terminar.
Estendem-se
nas tardes tórridas na soalheira do que a natureza dá e entoam saudades de
menino – de pernas ágeis a saltar muros tão mais novos, de pés menos tortos a
calcorrear pedras menos desgastadas- que esquecem repentinamente quando é hora
de voltar a casa.
As
faces mais jovens ficam perdidas entre a imensidão do céu e a da terra -
procuram saber qual a magia e enquanto o perguntam já rostos desfigurados de
tempo esperam para responder que dos segredos do mundo pouco se sabe.
Não se
conhece Monsaraz sem se conhecer as suas gentes, pois as suas gentes são quem
faz Monsaraz. Não se lembram bem as ruas se se descura a menina de outro tempo
sentada à porta vendo os transeuntes passar. Não se podem descobrir as doçarias
sem o simpático jovem do café mais próximo, nem saber quão confortável é o
passeio sem o senhor que avança e escala as ruelas ainda com fôlego para um bom
dia bem frisado.
É por
isso que este retrato é desconhecido – porque não se limita a ser retratado;
não se permite embelezar mais do que aquilo que demonstra e qualquer descrição
peca pela falência das palavras. No entanto nunca mais se esquece depois de ser
apreciado.
Ficam-nos os olhos amendoados e as faces envelhecidas,
ficam-nos as mãos engelhadas e enegrecidas pelo sol e pela terra, fica-nos a
sensação das rochas a passar por baixo das palmas dos pés e o sonoro calmo e
paciente de uma terra alentejana.
E se nos acautelarmos em atenção, o retrato não é apenas
exterior. Vive connosco e depois vive através de nós.
Essa, jovens, seja talvez a principal magia.
Crónicas do Alto da Vila, por Inês Valadas
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