Sabedoras daquela tradição, tanto Amália
Maria, como a mãe de Raul fizeram questão de oferecerem a fotografia do seu
ente querido, à Senhora do Rosário, em São Pedro do Corval, para que Ela o
protegesse e ele enfrentasse o perigo, com coragem na mata, em Moçambique.
Em Monsaraz, “A Noite de Fados”, meses
antes aprazada, efectuou-se num recinto, que em tempos recuados havia servido,
como praça de armas, e no presente funcionava como arena, onde decorriam as
touradas, principalmente durante as festas de verão, e noutros espectáculos
diversificados, e encontrava-se localizada no interior das muralhas do seu
castelo medieval. Provavelmente, por ser a sua última actuação, antes de seguir
para África, Raul ficaria desatento e ansioso, sentiu até uma espécie de
formigueiro a percorrer-lhe o corpo, e por pouco não contagiou, com os seus sintomas,
a boa disposição de Amália Maria. No seu ar doce e calmo, a jovem viu-se na
obrigação de lhe recordar que o êxito do espectáculo, ou do seu descalabro,
dependeria do desempenho que ambos tivessem. Ela, nunca havia presenciado à sua
estranha forma de agir, momentânea, desconhecia até a faceta mais derrotista
que Raul decidira revelar, que o arrasava e ela sentiu-se magoada. Ali, naquele
local, Raul revelou a sua faceta de indivíduo brusco e revoltado. Por
reconhecer que a sua companheira tinha razão, respondeu-lhe grosseira e
despropositadamente e amuou, a seguir, enquanto jurava que não actuaria, por
falta de interesse e até de voz.
Aflitos e receando pelo fiasco que o
espectáculo pudesse vir a ter, tanto os pais de Raul, como os pais de Amália, decidiram
chamá-lo para fora de olhares estranhos, e sem pressões, esforçaram-se por
incutir algum juízo, no desequilíbrio, que a sua cabeça manifestava, fazendo-lhe
ver que ele não poderia desistir de cantar, naquela noite, porque seria a
última em que o poderia fazer, durante os tempos mais próximos, e em território
Metropolitano, com o risco de arrastar pela lama, a sua, e a carreira da sua
companheira, mas teimoso, ele insistiu que regressaria a casa de seus pais,
porque cantar, era a última coisa lhe apetecia fazer, naqueles momentos de
desespero, e para desalento de quem assistia ao desenrolar do seu triste estado
patológico, fez uma tentativa para abandonar o castelo. No entanto, quando se
dirigia para a saída, como se um raio trespassasse uma azinheira, seria
acometido por uma crise de choro que o varou de alto a baixo, e lhe devolveu o
alento e o equilíbrio psíquico, que dele se tinham afastado. Afinal, ele “havia
passado a noite a lutar, em terras de África”, alagado em suores frios, e fora envolvido
num pesadelo, que parecia nunca mais ter fim. Pensar que o obrigariam a
abandonar Amália Maria e a seu filho, sem lhe darem, sequer, a felicidade de o
vir a conhecer, tinham-no colocado num estado de loucura.
Sentindo, depois, arrependimento, e o
arrependimento mata, pela incoerência do seu anterior procedimento, abeirou-se
da sua companheira com paixão, beijou-a, e pediu-lhe perdão, pela reacção
negativa, com que a havia magoado. Por ter calculado a razão dos seus reais
motivos Amália Maria, disse, apenas: “- A noite está linda, Raul…, vamos
divertir o público, que nos espera lá fora, e oferecer-lhe os melhores fados,
que integram os nossos repertórios. Lembra-te, meu amor, que temos que fazer
desta, uma noite memorável, especialmente só para nós, como se ela fosse a
única, a derradeira, para as nossas vidas, uma vez que o triste afastamento que
nos impõem, durante um período de tempo tão longo, assim vai parecer. Vai em
frente que, presentemente, nas nossas vidas não há, nem poderá haver lugar para
arrependimentos. Esqueçamos, pois, o lado negativo do que se passou contigo e
vivamos os melhores momentos em que estivermos juntos. Tento compreender a tua
reacção, de há momentos, e sei que o amor e o desespero te cegaram, mas agora
vamos, chega de retórica, que lá fora já esperam por nós e não podemos
desiludir ninguém.
De mão
dadas, sob forte emoção, resultante dos momentos dramáticos, que tinham vivido,
momentos antes, e de vibrantes e calorosos aplausos, com que o público os
brindaria, Raul e Amália Maria, dirigiram-se para um palco, que havia sido
colocado propositadamente, para aquele grandioso evento, na arena do Castelo
Medieval de Monsaraz. O palco, em redor, havia sido engalanado por folhas de
palmeiras, entrelaçadas e unidas por cordas, que haviam sido revestidas de
ervas verdes, que misturaram com flores, mas dispostas de forma a que os dois
fadistas fossem vistos de todos os ângulos, sem obstruções, e ambos tivessem
entrado numa moradia de deuses. No momento em que eles pisaram o recinto, onde
se realizaria o espectáculo, foi lançada uma salva de foguetes, com o intuito
de os homenagear, porque eles foram recebidos como personagens pertencentes à realeza,
não fosse a sua personalidade, concebida pela modéstia e ter-se-iam sentido
seres fora do comum, dos mortais, naquele ambiente.
No
firmamento, para espreitar o que se passava cá em baixo, na Terra, a lua cheia,
passeava altaneira, lançando os seus raios de prata, que envolviam as ameias do
castelo, em limalhas de luz, dando até a ideia que cumprimentavam e envolviam
os espectadores na sua magia, incutindo no seu espírito que, naquelas ameias,
haveria grupos de mouros escondidos, num jogo de esconde, esconde, e se
preparavam para conquistar as damas, que lhes arrebatavam os corações, estas,
por sua vez, encontravam-se escondidas nos segredos das muralhas.
Depois da grande homenagem, também ela simbolizada,
por fartos aplausos, que parecia não ter fim, o espectáculo musical começou com
um fado interpretado por Amália Maria, que provocaria no público uma sensação
de paz, bem estar e de euforia e, simultaneamente, pela voz e pela bela figura
da jovem fadista, que se apresentou envolvida na elegância dum vestido preto e
rendado, que lhe realçava a beleza morena, mas dissimulava o volume do seu abdómen.
Seguidamente, o público, rendido, pediu para que ela cantasse outros fados e
ela acedeu e fê-lo com o prazer de quem gostava de cantar e agradar aos seus
admiradores, mas depois, quando sentiu que o cansaço lhe começava a invadir o
corpo e o espírito, fez sinal ao seu companheiro, para que ele ocupasse o seu
lugar e Raul, sorridente, avançou na sua direcção, pegou-lhe numa mão, como já
o tinha feito em vezes anteriores, e levou-a até junto do público, como se a apresentasse
pela primeira vez, articulando, a seguir, um pequeno discurso, o seu discurso
de despedida, onde passaria a expor e a confessar o que lhe ia na alma, naquele
momento:
“- Esta noite é para ser vivida com
alegria, porque tanto eu, como Amália Maria, e devido à vossa preciosa
colaboração, propomos torná-la numa das mais bonitas e alegres da nossa
existência. No entanto, nunca será demais deixarmos de lado, ainda que por momentos,
a referida alegria, para expormos algumas tristes realidades, com que os jovens
se debatem, presentemente. Por exemplo, a falta de emprego e de condições
adequadas e condignas, para poderem usufruir de melhor vivência, nas suas
regiões. Ainda que haja gente que defenda o contrário, nunca foi, nem será
tarefa fácil sairmos das nossas terras, das nossas casas para deixarmos as
nossas famílias e os nossos amigos, tendo em vista outro destino e outras
paragens, quase sempre desconhecidas, em procura de melhor vida, porque o meio
onde nascemos e mantemos, bem seguras, as nossas raízes não no-la podem dar.
Amo, ardentemente, o meu Alentejo, que continua a guardar os meus maiores
tesouros físicos e sentimentais. Aqui dão-me amor, que representa o sentimento
mais forte que existe à face do Universo e mais poderei ambicionar, vindo do
meu semelhante. A Terra é boa, tem magia, convida-nos a conhece-la e a amá-la,
mas a Terra que possui aquele sentimento, que nos indicia a que lhe chamemos,
carinhosamente, de mãe, pertence somente a alguns. Creio que compreendem o que
quero dizer, porque eu sempre a amarei, independente do que ela foi, ou poderá
ser no futuro.
Para a maioria, dos que aqui vivem, forçosamente,
e sem no querer, ela representa mais a função de madrasta. Foi por sentir que
ela me tratava, com o último sentimento que referi, que a deixei, mas a que
custo...? Senti medo e desgosto quando tive de partilhar outras amizades e
enfrentar os usos e os costumes da nova terra que me abriu os braços e acolheu.
Com todas as contradições que encontrei, Lisboa foi e será sempre a minha
segunda, ou terceira Terra, porque para além da minha aldeia, “tenho outra mãe”
na bela Reguengos, que também me acolheu e ainda há o Barreiro... Claro, que a
causadora de eu me ter afeiçoado, tanto, à nossa bela Capital, seria a senhora
que se encontra a meu lado, o maior tesouro que lá encontrei. Só por essa
razão, valeu a pena ter sido para lá ”desterrado”. Mas sermos forçados a
abandonar a nossa Terra é um dos pontos negros com que nos debatemos, o outro,
bem mais negro e trágico, será a nossa partida involuntária para uma guerra,
que sentimos não ser nossa, nem nos pertencerá.
Não posso mencionar tudo, o que realmente
me assombra a alma, porque correrei o risco de ser incompreendido pela
insensibilidade de algumas pessoas e ser castigado, mas que maior castigo me
poderão “eles” infligir, para além daquele a que já me condenaram…? Vou ser
“desterrado” e obrigado a passar mais de dois anos a combater na mata, em
Moçambique... e deixarei a Terra e a minha família, que muito amo. Dentro de
poucos meses, entre muitas, nascerá uma criança, que é meu filho, e eu
interrogo-me, vezes sem conta, se um dia a poderei vir a conhecer, mas não
encontro resposta e acrescento, que é dramático e triste saber que me vão
juntar a centenas de homens, no porão dum navio, que não terá condições dignas
de albergar um ser humano, para me despejarem depois num País, em guerra, a
milhares de quilómetros de distância, com a incógnita de não saber se voltarei
a pisar solo Lusitano…
Bem, creio agora, que chega de retórica,
da minha parte, porque a que acabei de usar não será propriamente das mais
agradáveis de se ouvir, no entanto, sou sensível e estou convicto que as
verdades nunca são demais, serem ditas, nem ouvidas, até porque, e vendo bem,
calculo que não haverá uma única família, no nosso infeliz País, que não tenha
um dos seus elementos envolvido numa, ou em ambas as situações que acabei de
mencionar. O espectáculo vai prosseguir, sem laivos de tristeza. Comunico que a
alma do nosso Povo venceu mais uma vez, porque tanto a noite, Amália Maria e a
Lua, aqui em Monsaraz, foram as inspiradoras de mais uma letra, que dedicarei à
minha companheira e aos sentimentos mais profundos, que nos envolvem a ambos, que
se caracterizam no amor e no fado.
Embalado por ecos da planície, que
chegavam ao Castelo, como espíritos da terra, Raul foi escutado com muita
atenção, e em silêncio, porque as pessoas que ali se haviam deslocado, para o
ouvirem cantar, concordaram, em absoluto, com o que ele tinha dito, aliás, ele
apenas tinha dado voz a sentimentos que lhe ensombravam a alma, mas receavam
proferi-las em público, pela segurança das suas integridades física e moral. A
PIDE, até nas paredes tinha aliados, que denunciariam qualquer honrado cidadão,
por menos do que ele havia referido, e levavam-no à prisão e à tortura, se
assim o entendessem, além disso, gostavam da presença cativante de Raul e de o
terem ouvido falar, porque o achavam mais solto que quando ele vendia “caféi,
macarrão, entre outros géneros”, na Loja do senhor António. Afinal, a mudança,
da sua Terra, para Lisboa e a companhia de Amália Maria, haviam frutificado, sendo
benéficas para a construção da sua estrutura mental e cultural. Ele tinha
deixado de ser o rapazinho imberbe e inculto que eles haviam conhecido outrora,
e fora, também, graças ao esforço que ele havia despendido, para se tornar um
indivíduo detentor de maior número de conhecimentos, que quando havia estado
empregado, em Reguengos.
Amália Maria sorriu, depois da forte
emoção, por que tinha passado, relacionada com o amuo de Raul. Ela fora apanhada
de surpresa, pelo actual estado de espírito do seu companheiro e acreditou,
como alguém já lhe tinha revelado, que a envolvência com a fragrância da Terra
Alentejana, costuma produzir magia, a magia que se alia à fina sensibilidade de
alguns indivíduos, ou à inconstância do seu carácter, que despertou momentos de
grande inspiração, a Raul, ali em Monsaraz, e o levaram a compor a letra dum
novo fado, em poucos minutos. Sob o olhar circunspecto da sua companheira, Raul
fez um sinal aos músicos para que o acompanhassem, com os seus instrumentos
musicais e cantou, para satisfação dos espectadores: “Se ser fadista é pecado/E minha existência destrói,/Entreguei a alma ao
fado, Espero que Deus me perdoe./É loucura um grande amor,/Como loucura é o
fado,/Serei o maior pecador/Se ser fadista é pecado./Este fado que me encanta/É
sentimento que dói,/Quando me sai da garganta,/E minha existência
destrói./Vaidoso como
ninguém,/Faz-se sempre bem amado,/P’ra que me amem também,/entreguei a alma ao
fado./Se é parte do meu viver/E a minha sina constrói/Por ao fado tanto
querer/Espero que Deus me perdoe”.
Sob a dádiva de calorosos aplausos, que
encontraram eco nas ameias do Castelo, Amália Maria, abraçou-o e proferiu,
amantíssima:
- Deus, não terá de te perdoar, em nada,
aliás, Deus vai-te recompensar, pelo que tens feito, por divulgares e
enobreceres o fado, o próprio fado estará, com toda a certeza, reconhecido pelo
que tens feito por ele, para que seja feita justiça aos seus atributos. Em seu
nome, eu te agradeço.
- Não tenho assim tanta certeza, sobre o
que acabas-te de dizer, porque o fado é destino, que é descrito como fadário,
entre as várias definições que lhe fazem. Quem sabe se o fado, para me envolver
com o seu destino, não me vai arrastar para o seu fadário, um fadário de
sofrimento? As minhas perspectivas de futuro não são de bons augúrios... –
referiu Raul, como se um “sininho” o despertasse para prováveis consequências, no
seu futuro.
- Não deves ser tão pessimista, Raul,
porque o fado, o nosso destino, vai proteger-nos, como um bom amigo, que nos
estima e a quem nós muito estimamos. Tenho quase a certeza que daqui a pouco
mais de dois anos vamos estar neste mesmo local, a cantar, para estas pessoas,
num concerto mais caloroso que este e com o nosso filho a escutar-nos, e a
pendurar-se no meu vestido, como o mais maravilhoso espectador.
- Que o destino se cumpra como o auguras,
por que eu não tenho tanta certeza, provavelmente devido ao momento difícil que
estou a atravessar. Pressinto que, para nós, nem tudo de bom vai acontecer no
futuro, mas o meu estado de espírito, provavelmente, visiona uma irrealidade,
sem consistência.
À distância, indiferente a ressentimentos
e à voz dos homens, no sossego da planície, o Rio Guadiana também cumpria o seu
eterno fadário: “ser espanhol por nascimento e obrigado a percorrer e a irrigar
terras de Portugal”.
Texto: Manuel Manços Assunção Pedro
Fotografia de Monsaraz: Luis Lobo Henriques
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