Nunca será demais referir o que foi, anos
antes, a injusta e grotesca “Guerra no
Ultramar”, nem ela poderá ser esquecida, enquanto houver um ex-combatente vivo,
principalmente, pelo que devemos à memória dos mortos, de estropiados (gente a
quem desfizeram a vida de um momento para o outro) e de todos aqueles que lá
fomos deixar um bocado da “nossa melhor juventude”, nos melhores anos das
nossas vidas e para quê... passados mais de quarenta anos os frutos são bem visíveis.
Muito poderia revelar sobre o que vi e vivi, durante vinte meses, mas essas
revelações encontram-se escritas nas páginas de dois livros que redigi. No
entanto eu tive sorte, porque encontrei pessoas da minha Terra a residir na
cidade de Nampula e me trataram como se fosse seu filho, durante o tempo que lá
estive. Todas as guerras são injustas e criminosas, e transportam muita gente
nas “enxurradas do crime” e em “situações humanas” teriam um comportamento,
dito normal.
Decidi homenagear pessoas injustiçadas e divulgar
uma pequena ficção, baseada em factos verídicos, relacionados com a situação de
crianças “mulatas”, filhas de africanas e de soldados portugueses, que viviam
maritalmente enquanto lá se encontravam, mas quando regressavam à Metrópole deixavam-nas
abandonadas, como se o seu sangue não lhes corresse na veias.
Raul, havia terminado a sua participação,
como cantor, no naipe de tenores, num
concerto de Música Coral, na Igreja do Campo Grande, em Lisboa. Esperava junto
da respectiva paragem, um autocarro, que o transportasse ao Terreiro do Paço e,
distraído, com o olhar distante, observava os carros e as pessoas que passavam,
e quase se atropelavam, pelo facto de ser quase noite e pela pressa que tinham em
chegar às suas residências. Depois de alguns minutos à espera, chegou um
autocarro, o nº 45, com destino ao Cais do Sodré. Do “novelo” de passageiros
que se apearam, destacou-se um jovem mulato muito novo, ainda, e com boa
figura, Raul poderia até dizer que ele era um jovem bonito, e a miscelânea de
traços, no seu rosto, faziam-lhe recordar não sabia quem, e ele conhecia, que o
fez estremecer pela empatia que se estabeleceu entre ambos. A fisionomia que o
rapaz apresentava sensibilizou-o, e criou-lhe mau estar e desconforto, por se
sentir atraído pela esbelta figura dum homem jovem, que ele não conhecia, e no
entanto dava-lhe a impressão que, ou já
o vira algures, ou se parecia e muito, com alguém das suas amizades.
Instintivamente pressentiu que a sua figura também impressionava o outro que,
no entanto, preso aos seus olhos não deixou de caminhar na sua direcção para perguntar:
-
O senhor importa-se de me indicar onde fica a Cidade Universitária? Pela descrição
que me fizeram, penso que estarei próximo das suas intalações...
Raul deu a informação de que ele
precisava, com voz embargada, sem compreender o fenómeno que se passava consigo,
naquele momento, de sensibilizado que estava. O outro continuou, sorrindo e com
amabilidade na voz referiu:
- Agradeço a sua informação, porque não
conheço Lisboa. Acabei de chegar de África, venho colaborar num congresso, que
se realizará amanhã na Aula Magna... mas desculpe, a minha pergunta, que poderá
parecer impertinente e eu não o quero incomodar:
- Não nos encontrámos já...? Creio que a
sua cara não me é estranha. Parece, pela sua reacção, que o senhor também me
conhece. Esteve alguma vez em África, mais propriamente, em Moçambique...?
- Sim, já estive em África, mais
propriamente no norte de Moçambique, onde não vou... vai para mais de trinta
anos. Cumpri lá o serviço militar, obrigatório. Se nunca veio a Portugal é
impossível que nos tenhamos visto já e encontrado alguma vez, ou que nos
conheçamos, dada a sua juventude. Quando de lá saí, você provavelmente ainda
não teria nascido, ou seria uma criança de poucos meses, ou anos. Como sabe, há
pessoas muito parecidas, mas o mais estranho é que estejamos ambos com a
sensação de já nos termos visto, alguma vez...
Raul, pressentindo que algo de invulgar
se passava, esteve quase a comentar que precisamente, no norte de Moçambique,
tinha abandonado dois filhos, provavelmente com idades aproximadas às que ele
parentava, mas coibiu-se de o fazer. Além da vergonha que provocam, há segredos
que não se devem divulgar nunca, pelos danos que podem causar. Mais uma vez os
seus medos e a sua cobardia tinham vencido.
- Sabe, sou filho duma africana e do “vento
que atravessou as palmeiras, num dia de muito sol”. Minha mãe dava-me essa
resposta quando, sentado à porta da nossa humilde palhota, em criança, lhe
perguntava o nome de meu pai.
-
Mas não chegou a conhecer o nome de seu pai? Perguntou Raul, curioso com
ambas as pernas a querem falhar.
- Não senhor. Apenas sei que sou filho
dum tropa, português, que decidiu fugir para a Metrópole, antes da
independência de Moçambique..., mas tive sorte. Um amigo de meu pai voltou a Nampula
e quando um dia me viu nas ruas da cidade andrajoso e com fome, levou-me para
sua casa, a mim e a meu irmão, depois de se ter inteirado da nossa identidade, saciou-nos
a fome e mandou-nos tirar um curso Superior.
- E como se chama, ou chamava esse amigo
de seu pai, pode ser que eu o conheça. Estive lá, é bem provável que eu o
conheça?
- É um alentejano de muito bom coração,
chama-se Brites Rosado. É de Reguengos, próximo da aldeia onde o meu pai nasceu
e cresceu, conhece-o?
- Não, nunca ouvi falar nesse nome –
respondeu Raul, mantendo-se de pé, sem saber como, nem porquê – e seu irmão,
está bem, que curso fez ele?
- O meu irmão está bem! Tem dois meninos,
com eu tenho e é professor na cidade de Nampula e não desiste de procurar, por
todos os lados, o nosso pai, uma vez que nossa mãe se nega a faze-lo –
respondeu o jovem africano, curioso pela pergunta que o outro lhe havia feito.
Sensibilizado, Raul comentou para os seus
botões: Até nesse aspecto saem a mim, “só geramos rapazes...”
De madrugada, num sonho calmo, que lhe traria
as melhores recordações de outros tempos, Raul “amou a negra” com quem tinha
vivido, em Moçambique, vendo-se depois rodeado pelos filhos, de ambos. Brincava
e corria com eles pela mata africana, depois o sonho nublava-se e via-se a
abraçar o rapaz que havia encontrado na tarde do dia anterior para o beijar,
com ternura, como se ele lhe pertencesse, e lhe provocou uma sensação de amor e
de desconforto, acabando por concordar, na escuridão da noite, sem sono, que
nada acontece por acaso, na existência do ser humano, havendo mistérios
difíceis de explicar, ou não... Além disso Brites Rosado estava metido no
assunto.
CRÓNICAS DO ALTO DA VILA
01.11.2017
(foto: António Caeiro)
(foto: António Caeiro)
Sem comentários:
Enviar um comentário