Escolho o caminho de
S. Pedro, o maior centro oleiro, para voltar a Monsaraz e às crónicas do Alto
da Vila, mas sem nada previsto quedo-me pelo sopé onde estendido como preguiçoso
lagarto ao sol, encontro o Telheiro e a minha velha escola que um benemérito da
terra, de nome Caeiro, percebendo a importância do ensino, mandou construir em
tempos idos.
Edifício simples de
arquitetura semelhante a muitos outros do estado novo. Pequeno átrio de entrada
a dar acesso a uma única sala que reunia as quatro classes. Cá fora três arcos
a sustentar um alpendre que servia de abrigo aos desacatos do tempo e um
terreno murado que durante o recreio se transformava em torneios de pião, do
berlinde, jogo do eixo ou do funcho. Todas as brincadeiras tinham um calendário
preciso que era aceite sem contestação.
Na sala de aula o mobiliário rudimentar precisava de reforma.
A secretária de pinho da professora, com duas gavetas onde se escondia uma
palmatória que nunca vimos, mas que a D. Conceição, bondosa e paciente assegurava
existir. O quadro negro, três filas de carteiras de dois lugares onde se anichavam
separadamente as raparigas e os rapazes. Ao lado da lareira que poucas vezes
servia, um armário que continha alguns livros, o boião da tinta permanente que
haveria de encher os pequenos tinteiros e um saco de leite em pó que em certas
ocasiões era distribuído pela turma. Creio que no Natal e na Páscoa.
Ainda hoje recordo aquela bola que se formava, pegava ao céu
da boca e ia derretendo lentamente, deixando um sabor que forrava as paredes do
estômago com sumarenta quietude. Na parede dois mapas, o do continente e o das
colónias, terras de costumes bárbaros onde o Manuel que era o sapateiro da
aldeia já quase mestre, morreu com um tiro na barriga. Gastos do uso, os ditos,
meio desfiados mais pareciam pergaminhos, e a ladear o quadro de ardósia as
figuras imponentes do regime: O almirante de fato igual ao homem dos gelados a
que não faltava o boné branco e o professor Salazar, muito sisudo, de olho na
turma, não fosse haver alguma sublevação! No meio, um Cristo crucificado e
tornado escuro pelo óxido do tempo.
Estaciono o carro à
sombra do posto da GNR e bem guardado, fico ali com o silêncio a pesar-me nos
ombros, o dia a queimar-me em palavras … as recordações a empapar-me a memória
enquanto o sino de Monsaraz bate as duas da tarde.
A minha escola! A
minha mas também a do Zé António, do Evaristo, do Chico, do Inácio, da Paula, da
Catarina, da Suzete, da Benvinda e muitos outros que ali aprenderam, trocaram
saberes, partilharam momentos e fizeram adormecer a manhã soletrando num som
monocórdico a cantilena morna da tabuada. Ali aprendemos de cor e salteado os
rios e afluentes, as serras e os mares e de dedo indicador espetado sobre o
mapa, viajámos por comboios imaginários.
Um dia a escola
fechou, como tantas outras por esse país fora.
Era fácil esgrimir
argumentos falaciosos. Fazer outras contas que não as da aritmética simples que
aprendemos. Outros jogos que não os do antigo pátio murado.
Vieram senhores
ilustres falar de progresso, de tecnologias, de rácios que ninguém percebia e o
último miúdo vestido de bibe aos quadradinhos azuis, deixou rolar duas
lágrimas, (como o tal menino do quadro das feiras que toda a gente pendurava na
parede da sala), antes de entrar para o autocarro que o iria levar para outra
escola mais distante para satisfazer os desejos economicistas dos senhores bem
falantes que usam fato escuro e sorriso para todas as ocasiões.
CRÓNICAS DO ALTO DA VILA
Luís Filipe Marcão
01.06.2015
(fotografia da CMRM)
(fotografia da CMRM)
2 comentários:
Um passeio de recordações que marcam a vida e que nos enchem de emoções! Adorei meu amigo! Parabéns
Parabéns, amigo Luis Filipe Marcão, pela bonita e bem imaginada Crónica que escreveu e muito veio avivar memórias que, aparentemente, eu tinha apagadas na memória devido à distância no tempo. Poderia mencionar várias situações que referenciou, e foram comuns, mas para não me tornar fastidioso refiro a que mais me marcou e se relaciona com a descrição "sobre o leite em pó". Abraço.
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