A LENDA DA
COBRA MOIRA
Minha terra é linda! A sua beleza de
pequena urbe infiltra-se na gente, a cada pedra que pisamos, a cada esquina que
dobramos, das ruas de casas térreas de adobe.
O seu rosto mítico, transpira odores dum
primaveril Olimpo, com características, remontando aos ancestrais tempos da
moirama. Sob um coro de cigarras, cruzam-se os cheiros das rosas e dos goivos,
com os da hortelã, da salsa e dos coentros, numa agradável e estonteante
embriaguez de ervas molhadas, em dia de grande calma. Subindo ao
"miradouro" do Monte Arriba, pequena elevação situada do lado do
nascente, vê-se aproximar o sol, vindo de muito longe, trazendo lembranças de
Espanha e das gentes do Baldio. E em frente, no lado oposto, cortando a linha
do horizonte, bem rentinha ao céu, na planura distante e multifacetada, a Serra
de Portel insinua-se majestosa no seu azul neblina. Logo abaixo, ilusoriamente,
querendo roçar--lhe o sopé despontam Montes, semeados no verde amarelado das
searas, ou no térreo castanho dos alqueives, na sua cândida brancura encimada
pelas coroas grenás dos telhados. Entre tantos, ele é o Pegeiro, parecendo uma
caixa de fósforos, e mais perto, numa colina, rodeada de verdes das culturas do
verão, o do Outeiro, fazendo destacar as suas chaminés seculares, afuniladas,
tipo caixote, e ainda mais perto, num baixio, o da Abegoaria que, orgulhoso das
suas origens por ter sido pão de tanta gente, em tempos de grande pobreza,
enriquece-nos o olhar, ofertando-nos o alto cipreste, que se avista de muito
longe abraçando a planície, nos seus inúmeros braços verdes, além do casario
apalaçado e dos contornos da fachada da sua capela, semi-escondida por
trepadeiras em flor. Este local sagrado é local de culto, de novenas e de
grande fé, onde a Senhora da Piedade, na sua angústia de mãe, acomoda no
regaço, o seu Bendito Filho agonizando, num nicho sobre o altar-mor.
Serpenteando no montado, a linha férrea,
liga ilusões das feiras de S. João, em Évora, e a de Agosto, em Reguengos. Se
tivermos a sorte dum comboio, fumegante e apitando, nos passar ao largo do
olhar, os pensamentos voam à sua frente, pousando num carrossel, ou numa rua de
feira.
Não cansa espraiar os olhos na extensa
planura, escutando o cumprimento da natureza, generosa e alegre, por nos dar frutos
de tanta beleza. Reguengos fica escondida para lá do Barro, como ilha flutuante
entre vinhedos. Ali à esquerda, semi-escondida pelos choupos e pelos chaparros
do Mouro, a Caridade, ladeada pelo Monte do Barrocal, parece querer beijar o
Monte dos Lázaros, que por sua vez, corre para a minha aldeia, através do rio
prateado da estrada nova.
Lá ao fundo, à direita, distante, sobre
uma colina, o Monte da Casa Alta refulge ombreando com Montoito, mais abaixo na
planície.
Aldeias e o Monte da Casinha não se
avistam, mas pressente-se a vida dos seus habitantes no ritual do dia a dia.

Mais abaixo o Monte do tio Costa, um
bloco escuro que não foi caiado, desponta na paisagem com os seus altivos
eucaliptos, e ao fundo, mesmo ali à mão, como uma boneca branca de cabelos
vermelhos, surge a minha terra, pequenina, formando um contraste, onde o alvo
das paredes das casas se insinua ao rubro dos telhados e às flores que
ornamentam os poiais e os quintais.
Tem o dourado dos Outeirões, bordado de
chaparros, sobreiros e oliveiras, por trás a emoldurar as casas de portas e
janelas, pequenas e castanhas, aureoladas, normalmente, por frisos de cor azul,
ou de oca amarela.
Nos alpendres, espalhados por detrás das
habitações, ovelhas e cabras, apoiando-se nas patas traseiras, depenam com os
dentes pequenos molhos de erva, pendurados das traves dos tugúrios, enquanto os
cães, presos por correntes, brincam atirando-se aos galináceos, assustando-os e
gatos ronronando em cima de erva seca e de trapos velhos, accionam o fole das
barrigas, à sombra das oliveiras.
Dentro dos quintais há pequenos
hortejos, cercados pelos desertos acastanhados das bardas de lenha que os protegem
dos animais e demarcam do restante terreno, ofertando-nos um postal de oásis
verdes e luxuriantes.
Na rudez das pedras das ruas, no fumo
ziguezagueante que sai das chaminés, pressente-se o misticismo pairando como
asa envolvente, em todos os cantos e becos, resultante de lendas e contos,
passados de geração em geração, contados em frente do lume, nas longas e frias
noites de inverno, ou nos serões das mornas noites de estio, ás portas, sob o
manto estrelado do firmamento.
Junho, é normalmente um mês de
contrastes, em que a aliar-se ao calor do sol, deslumbrante, os campos
perfumados, dão-nos visões invulgares, ora verdes, ora dourados, ora o verde
amarelado das searas a ficarem maduras, salpicadas de papoulas e marcela, em que as festas e os rituais se repetem a
homenagear o Verão, soberano e acolhedor.
É, também, Junho, desde tempos
imemoráveis, mês de Santos Populares e de "sortes".
Na madrugada do dia de Santo António com
o galo ainda a dormir, em carroças puxadas por muares, os mancebos partem para
Redondo, a fim de, nas suas vestes de "pai Adão", serem
inspeccionados na Câmara Municipal, numa sala do primeiro andar.
Alguns sentem a doce alegria da
liberdade se a "sorte" lhes sorri, os outros, uma negra dose de
melancolia nublará os seus corações porque a "sorte" lhes abre as
portas para cumprimento do serviço militar, obrigatório. Mas, no regresso à
aldeia, todos mostram satisfação, cantando em cima das carroças, enfeitadas com
folhas de palmeiras e flores de aloendro, principalmente quando chegam perto
das jovens e das crianças, que a pé, os foram esperar às portas de Montoito.
É, o dia das "sortes", um dos
mais bonitos e felizes para aquela gente, boa e simples, onde os dias
"grandes" se contam pelos dedos, durante a sua vida de trabalho, árduo
e duro. Os pais, orgulham-se de vaidade pelos filhos, belos e robustos, que a
natureza lhes deu serem já considerados homens, estes por assim serem vistos e
sentirem toda a força e vigor da juventude; as moças por lhes oferecerem, à
noite, um bailarico e poderem visitar, de tarde, as residências deles com
determinado interesse, na companhia das mulheres mais velhas que, por tradição,
vão de casa em casa, visitar e animar as mães dos futuros soldados e, os
gaiatos, porque saem da povoação, correndo por covas e outeiros, na sua
irrequieta traquinice, escondendo-se aqui e acolá, subindo ou pendurando-se
duma árvore, no intuito de colherem uma pêra, ou uma maçã, prematuras, no seu
raiar avermelhado, que o dono não descobriu.
Já na véspera as raparigas passaram a
tarde no campo, a colher ramos de freixo e de flores campestres, para
enfeitarem os “mastaros”.
Cumprindo um ritual, que se reporta à
era mudejar, arranjam-se cinco paus, quatro com cerca da altura dum homem e
outro um pouco maior, revestem-nos daquela viçosa e bonita matéria espetando-os
depois no chão, o maior ao centro, encimado por uma bandeira de papel, e os
outros, à volta, com espaço suficiente para à noite, sob os acordes duma
concertina, dançarem na "sala de visitas da aldeia", O Largo do Poço,
até ao levantar da aurora, do dia seguinte.
Mas nem sempre o dia das “sortes” sorriu
à gente da minha terra.
Num ano em que a data se perdeu no ciclo
consecutivo do tempo, por um motivo que a ninguém já lembra, aquele dia sempre
tão festivo, foi transferido para o S. João.

Como as casas da aldeia não têm
instalações sanitárias. Manda a tradição que os mancebos se libertem do suor e
do pó dos campos num tanque junto da nora do Monte Abaixo, à noitinha, fora de
olhares curiosos, na véspera do dia das "sortes".
No ano maldito, dos cinco rapazes que
deveriam apresentar-se em Redondo, apenas quatro o fizeram, porque o mais
robusto, garboso e valente jovem, por quem muitas mulheres morriam de amores,
desapareceu para nunca mais ser visto.
Era pastor, o desditoso moço que, por
motivos imprevistos, ficou retido junto do rebanho, durante a noite, apenas
podendo lavar-se, e só, na manhã do dia de má sorte.
Despontavam os primeiros raios solares,
enchendo a planície duma aguarela alaranjada quando José Lourenço, com um
arrepio, se dispunha a sair da água fresca do tanque, onde semeara pó, suor e
calor com que a noite quente de verão o bafejara, sem se ter apercebido que, a
seu lado, apenas dois, três metros, numa fenomenal metamorfose a nora se
alargou, afastando as paredes de blocos vermelhos, como pétalas de rosa
douradas a abrir-se, para dar lugar a um espectáculo inigualável, de acordo com o teor da lenda.
Nas manhãs de S. João uma figura, metade
mulher, metade cobra, reaparece junto do gargalo da nora, vinda das
profundezas, erecta e altiva, em cima de alcatruzes, resplandecentes, num
extraordinário ritual, onde seis escravos seminus, de pele escura, a esperam
perfilados, enquanto outro conduz o magnífico ginete branco que, atrelado a um
dispositivo mecânico, acciona a engrenagem.
Depois, sob um dossel de finos brocados,
impregnados de embriagantes perfumes, sentada sobre tapetes inigualáveis,
aquela mítica figura de tronco esbelto e rosto moreno, de rara beleza,
escondendo a metade réptil debaixo dum vestido comprido, azul celeste, semeado
de pedrarias, penteia os longos cabelos negros com um pente de oiro fino,
cantando hinos de perdição, que transmitem uma mensagem maldita, de Afrodite,
no intuito de atrair e despedaçar de amor e desejo o coração dos varões
possantes e viris de vinte anos.

Ficou cego quem de longe viu e contou. E
nos dias de hoje ainda paira algum medo e terror na aldeia, até os varões de
tenra idade costumam ser avisados para nunca se aproximarem da nora, nas manhãs
de S. João, porque a "Cobra Moura" poderá surpreende-los e levá-los
para o seu palácio de oiro, onde acabará por os eliminar, na louca ânsia do
amor, tentando conceber filhos, à imagem dos homens, o que jamais acontecerá,
porque ela foi amaldiçoada.
CRÓNICAS DO ALTO DA VILA
01.02.2018 - a partir de texto de 1988
(fotografia: António Caeiro)
(fotografia: António Caeiro)
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