quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Crónicas do Alto da Vila | por Manuel Manços Assunção Pedro | 01.02.2018

Manuel Manços Assunção Pedro
A LENDA DA COBRA MOIRA

Minha terra é linda! A sua beleza de pequena urbe infiltra-se na gente, a cada pedra que pisamos, a cada esquina que dobramos, das ruas de casas térreas de adobe.


O seu rosto mítico, transpira odores dum primaveril Olimpo, com características, remontando aos ancestrais tempos da moirama. Sob um coro de cigarras, cruzam-se os cheiros das rosas e dos goivos, com os da hortelã, da salsa e dos coentros, numa agradável e estonteante embriaguez de ervas molhadas, em dia de grande calma. Subindo ao "miradouro" do Monte Arriba, pequena elevação situada do lado do nascente, vê-se aproximar o sol, vindo de muito longe, trazendo lembranças de Espanha e das gentes do Baldio. E em frente, no lado oposto, cortando a linha do horizonte, bem rentinha ao céu, na planura distante e multifacetada, a Serra de Portel insinua-se majestosa no seu azul neblina. Logo abaixo, ilusoriamente, querendo roçar--lhe o sopé despontam Montes, semeados no verde amarelado das searas, ou no térreo castanho dos alqueives, na sua cândida brancura encimada pelas coroas grenás dos telhados. Entre tantos, ele é o Pegeiro, parecendo uma caixa de fósforos, e mais perto, numa colina, rodeada de verdes das culturas do verão, o do Outeiro, fazendo destacar as suas chaminés seculares, afuniladas, tipo caixote, e ainda mais perto, num baixio, o da Abegoaria que, orgulhoso das suas origens por ter sido pão de tanta gente, em tempos de grande pobreza, enriquece-nos o olhar, ofertando-nos o alto cipreste, que se avista de muito longe abraçando a planície, nos seus inúmeros braços verdes, além do casario apalaçado e dos contornos da fachada da sua capela, semi-escondida por trepadeiras em flor. Este local sagrado é local de culto, de novenas e de grande fé, onde a Senhora da Piedade, na sua angústia de mãe, acomoda no regaço, o seu Bendito Filho agonizando, num nicho sobre o altar-mor.
Serpenteando no montado, a linha férrea, liga ilusões das feiras de S. João, em Évora, e a de Agosto, em Reguengos. Se tivermos a sorte dum comboio, fumegante e apitando, nos passar ao largo do olhar, os pensamentos voam à sua frente, pousando num carrossel, ou numa rua de feira.    
Não cansa espraiar os olhos na extensa planura, escutando o cumprimento da natureza, generosa e alegre, por nos dar frutos de tanta beleza. Reguengos fica escondida para lá do Barro, como ilha flutuante entre vinhedos. Ali à esquerda, semi-escondida pelos choupos e pelos chaparros do Mouro, a Caridade, ladeada pelo Monte do Barrocal, parece querer beijar o Monte dos Lázaros, que por sua vez, corre para a minha aldeia, através do rio prateado da estrada nova.
Lá ao fundo, à direita, distante, sobre uma colina, o Monte da Casa Alta refulge ombreando com Montoito, mais abaixo na planície.
Aldeias e o Monte da Casinha não se avistam, mas pressente-se a vida dos seus habitantes no ritual do dia a dia.

Ao lado,  logo ali à direita, sob o esvoaçar dos pássaros, o Monte do Outeiro (o outro), parece um punhado de casas atiradas por um duende para a pequena elevação onde foi plantado, deslumbrando-nos com a rusticidade das suas paredes de neve, contornadas por rosas e outras flores, que formam um ramo de muitas cores, e pelo seu aspecto de aldeia de conto de fadas.
Mais abaixo o Monte do tio Costa, um bloco escuro que não foi caiado, desponta na paisagem com os seus altivos eucaliptos, e ao fundo, mesmo ali à mão, como uma boneca branca de cabelos vermelhos, surge a minha terra, pequenina, formando um contraste, onde o alvo das paredes das casas se insinua ao rubro dos telhados e às flores que ornamentam os poiais e os quintais.
Tem o dourado dos Outeirões, bordado de chaparros, sobreiros e oliveiras, por trás a emoldurar as casas de portas e janelas, pequenas e castanhas, aureoladas, normalmente, por frisos de cor azul, ou de oca amarela.
Nos alpendres, espalhados por detrás das habitações, ovelhas e cabras, apoiando-se nas patas traseiras, depenam com os dentes pequenos molhos de erva, pendurados das traves dos tugúrios, enquanto os cães, presos por correntes, brincam atirando-se aos galináceos, assustando-os e gatos ronronando em cima de erva seca e de trapos velhos, accionam o fole das barrigas, à sombra das oliveiras.
Dentro dos quintais há pequenos hortejos, cercados pelos desertos acastanhados das bardas de lenha que os protegem dos animais e demarcam do restante terreno, ofertando-nos um postal de oásis verdes e luxuriantes.
Na rudez das pedras das ruas, no fumo ziguezagueante que sai das chaminés, pressente-se o misticismo pairando como asa envolvente, em todos os cantos e becos, resultante de lendas e contos, passados de geração em geração, contados em frente do lume, nas longas e frias noites de inverno, ou nos serões das mornas noites de estio, ás portas, sob o manto estrelado do firmamento.
Junho, é normalmente um mês de contrastes, em que a aliar-se ao calor do sol, deslumbrante, os campos perfumados, dão-nos visões invulgares, ora verdes, ora dourados, ora o verde amarelado das searas a ficarem maduras, salpicadas de papoulas e marcela,  em que as festas e os rituais se repetem a homenagear o Verão, soberano e acolhedor.
É, também, Junho, desde tempos imemoráveis, mês de Santos Populares e de "sortes".
Na madrugada do dia de Santo António com o galo ainda a dormir, em carroças puxadas por muares, os mancebos partem para Redondo, a fim de, nas suas vestes de "pai Adão", serem inspeccionados na Câmara Municipal, numa sala do primeiro andar.
Alguns sentem a doce alegria da liberdade se a "sorte" lhes sorri, os outros, uma negra dose de melancolia nublará os seus corações porque a "sorte" lhes abre as portas para cumprimento do serviço militar, obrigatório. Mas, no regresso à aldeia, todos mostram satisfação, cantando em cima das carroças, enfeitadas com folhas de palmeiras e flores de aloendro, principalmente quando chegam perto das jovens e das crianças, que a pé, os foram esperar às portas de Montoito.

É, o dia das "sortes", um dos mais bonitos e felizes para aquela gente, boa e simples, onde os dias "grandes" se contam pelos dedos, durante a sua vida de trabalho, árduo e duro. Os pais, orgulham-se de vaidade pelos filhos, belos e robustos, que a natureza lhes deu serem já considerados homens, estes por assim serem vistos e sentirem toda a força e vigor da juventude; as moças por lhes oferecerem, à noite, um bailarico e poderem visitar, de tarde, as residências deles com determinado interesse, na companhia das mulheres mais velhas que, por tradição, vão de casa em casa, visitar e animar as mães dos futuros soldados e, os gaiatos, porque saem da povoação, correndo por covas e outeiros, na sua irrequieta traquinice, escondendo-se aqui e acolá, subindo ou pendurando-se duma árvore, no intuito de colherem uma pêra, ou uma maçã, prematuras, no seu raiar avermelhado, que o dono não descobriu.
Já na véspera as raparigas passaram a tarde no campo, a colher ramos de freixo e de flores campestres, para enfeitarem os “mastaros”.
Cumprindo um ritual, que se reporta à era mudejar, arranjam-se cinco paus, quatro com cerca da altura dum homem e outro um pouco maior, revestem-nos daquela viçosa e bonita matéria espetando-os depois no chão, o maior ao centro, encimado por uma bandeira de papel, e os outros, à volta, com espaço suficiente para à noite, sob os acordes duma concertina, dançarem na "sala de visitas da aldeia", O Largo do Poço, até ao levantar da aurora, do dia seguinte.
Mas nem sempre o dia das “sortes” sorriu à gente da minha terra.
Num ano em que a data se perdeu no ciclo consecutivo do tempo, por um motivo que a ninguém já lembra, aquele dia sempre tão festivo, foi transferido para o S. João.
Houve ainda protestos, mas rapidamente foram sanados dado que, o S. João, é também um dos Santos mais queridos, esquecendo-se o Povo que as lendas poderão conter algo de verídico, e o que deveria ter sido um dia de alegria transformou-se em catástrofe, dor e desgosto.
Como as casas da aldeia não têm instalações sanitárias. Manda a tradição que os mancebos se libertem do suor e do pó dos campos num tanque junto da nora do Monte Abaixo, à noitinha, fora de olhares curiosos, na véspera do dia das "sortes".
No ano maldito, dos cinco rapazes que deveriam apresentar-se em Redondo, apenas quatro o fizeram, porque o mais robusto, garboso e valente jovem, por quem muitas mulheres morriam de amores, desapareceu para nunca mais ser visto.
Era pastor, o desditoso moço que, por motivos imprevistos, ficou retido junto do rebanho, durante a noite, apenas podendo lavar-se, e só, na manhã do dia de má sorte.
Despontavam os primeiros raios solares, enchendo a planície duma aguarela alaranjada quando José Lourenço, com um arrepio, se dispunha a sair da água fresca do tanque, onde semeara pó, suor e calor com que a noite quente de verão o bafejara, sem se ter apercebido que, a seu lado, apenas dois, três metros, numa fenomenal metamorfose a nora se alargou, afastando as paredes de blocos vermelhos, como pétalas de rosa douradas a abrir-se, para dar lugar a um espectáculo inigualável, de acordo  com o teor da lenda.
Nas manhãs de S. João uma figura, metade mulher, metade cobra, reaparece junto do gargalo da nora, vinda das profundezas, erecta e altiva, em cima de alcatruzes, resplandecentes, num extraordinário ritual, onde seis escravos seminus, de pele escura, a esperam perfilados, enquanto outro conduz o magnífico ginete branco que, atrelado a um dispositivo mecânico, acciona a engrenagem.
Depois, sob um dossel de finos brocados, impregnados de embriagantes perfumes, sentada sobre tapetes inigualáveis, aquela mítica figura de tronco esbelto e rosto moreno, de rara beleza, escondendo a metade réptil debaixo dum vestido comprido, azul celeste, semeado de pedrarias, penteia os longos cabelos negros com um pente de oiro fino, cantando hinos de perdição, que transmitem uma mensagem maldita, de Afrodite, no intuito de atrair e despedaçar de amor e desejo o coração dos varões possantes e viris de vinte anos.
Quando o infeliz pastor escutou os primeiros acordes, dos sete instrumentos, tocados por igual número de escravas desnudadas, que acompanhavam a voz da perdição, estupefacto virou a cabeça na sua direcção fixando os olhos nos belos olhos do desejo. De seguida, incontrolável, num impulsivo e ágil salto de felino, mostrando o corpo escultural e viril, em toda a sua plenitude, sob os olhares cobiçosos das serviçais enleou-se loucamente no abraço que o perdeu definitivamente e o levou para o encanto.
Ficou cego quem de longe viu e contou. E nos dias de hoje ainda paira algum medo e terror na aldeia, até os varões de tenra idade costumam ser avisados para nunca se aproximarem da nora, nas manhãs de S. João, porque a "Cobra Moura" poderá surpreende-los e levá-los para o seu palácio de oiro, onde acabará por os eliminar, na louca ânsia do amor, tentando conceber filhos, à imagem dos homens, o que jamais acontecerá, porque ela foi amaldiçoada.




CRÓNICAS DO ALTO DA VILA

01.02.2018 - a partir de texto de 1988 
(fotografia: António Caeiro)

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