quarta-feira, 4 de abril de 2018

Crónicas do Alto da Vila | por Luís Filipe Marcão | 04.04.2018


Percebo hoje a dificuldade de escrever sobre um tema quando, por falta do mesmo, a criatividade fica encalhada e perdida diante do deserto da folha de papel ou frente ao monitor. Lembro-me dos tempos do secundário em que encolhido e expectante aguardava o anúncio da redacção.

Conjecturava hipóteses. Talvez sobre as estações do ano e as suas incidências nos estados de alma? Os últimos concertos dos Beatles? Quem sabe, um tema de história local ou os sonhos e projectos de cada um daqueles futuros engenheiros, arquitectos, cientistas? E porque não, uma carta de amor? Daquelas que o Fernando Pessoa achava ridículas? Até já tinha mentalmente alinhado algumas frases envoltas de romantismo, inspiradas na pequena, de olhos verdes e cabelos loiros, que se sentava dois lugares à frente, do lado oposto.

Qualquer tema nos serviria para, em vinte ou trinta linhas, nos sujeitarmos aos seis valores da composição, mas naquela manhã de Abril com inusitada e atrevida surpresa, a professora anunciou, olhando a turma por cima dos óculos:

- Livre! Tema livre! Percebem?

Sim Sô Tora, claro que sim. Percebemos.

Mas… aquela liberdade, atirada assim de chofre para o meio da aula, em vez de ajudar, atrapalhava. Talvez fosse por não estarmos habituados a ela. As palavras não saíam. Colavam-se teimosas ao bico da esferográfica, ficavam suspensas no pensamento, num exercício de equilibrista em corda bamba, e na maioria das vezes estatelavam-se impotentes e sem significado, no patamar da nossa aflição.

Passado a inquietação dos primeiros instantes repleto de falhadas tentativas, as ideias lá iam descobrindo caminho, formando frases até ao último suspiro de alívio, rematado com um ponto final conclusivo. Uf! Era obra. Quase vinte linhas de animada retórica, nem o conselheiro Acácio!

Com o tempo descobrimos como era tão bom viver e saborear a liberdade.

Um dia, acasos do destino, encontrei um antigo companheiro do liceu. Rapaz esperto, ministeriável, de modos polidos, com duas licenciaturas em tonterias e uma pós- graduação em dislates que se alongou num discurso bolorento, onde misturou as esperanças de D. Sebastião com as memórias do Marquês e as saudades mal disfarçadas a respeito de um velho professor que caiu da cadeira. Poderia contrariar aquele incêndio de palavras com as lágrimas das mães e viúvas, dos soldadinhos que nunca voltaram. Com a fome e as praças de jorna cheias de uma gente madura que resistiu e lutou. Também me lembrei do Tarrafal, das mordaças e algemas e do lápis azul do censor, enquanto ele esgrimia argumentos e golpeava num entusiasmo que lhe fazia corar o rosto, “os motins” que não ousava compreender.

E de repente veio-me à lembrança uma frase muito simples que ouvi à colega Mercedes e segredei-lhe:

“ Abril já nos trouxe tantas coisas boas! “

Foi o suficiente para me voltar as costas e afastar-se em passo apressado, virando à direita. Eu segui, em sentido contrário, contra o vento agitado e uma chuva miúda que ensopava os ossos e me fazia recordar outra quinta-feira, já muito distante.

CRÓNICAS DO ALTO DA VILA

04.04.2018 
(foto: António Caeiro)


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