Percebo hoje a dificuldade de escrever sobre um tema quando, por
falta do mesmo, a criatividade fica encalhada e perdida diante do deserto da
folha de papel ou frente ao monitor. Lembro-me dos tempos do secundário em que
encolhido e expectante aguardava o anúncio da redacção.
Conjecturava hipóteses. Talvez sobre as estações do ano e as
suas incidências nos estados de alma? Os últimos concertos dos Beatles? Quem
sabe, um tema de história local ou os sonhos e projectos de cada um daqueles
futuros engenheiros, arquitectos, cientistas? E porque não, uma carta de amor? Daquelas
que o Fernando Pessoa achava ridículas? Até já tinha mentalmente alinhado
algumas frases envoltas de romantismo, inspiradas na pequena, de olhos verdes e
cabelos loiros, que se sentava dois lugares à frente, do lado oposto.
Qualquer tema nos
serviria para, em vinte ou trinta linhas, nos sujeitarmos aos seis valores da
composição, mas naquela manhã de Abril com inusitada e atrevida surpresa, a
professora anunciou, olhando a turma por cima dos óculos:
- Livre! Tema livre! Percebem?
Sim Sô Tora, claro que sim. Percebemos.
Mas… aquela liberdade,
atirada assim de chofre para o meio da aula, em vez de ajudar, atrapalhava.
Talvez fosse por não estarmos habituados a ela. As palavras não saíam.
Colavam-se teimosas ao bico da esferográfica, ficavam suspensas no pensamento,
num exercício de equilibrista em corda bamba, e na maioria das vezes
estatelavam-se impotentes e sem significado, no patamar da nossa aflição.
Passado a inquietação
dos primeiros instantes repleto de falhadas tentativas, as ideias lá iam
descobrindo caminho, formando frases até ao último suspiro de alívio, rematado
com um ponto final conclusivo. Uf! Era obra. Quase vinte linhas de animada
retórica, nem o conselheiro Acácio!
Com o tempo
descobrimos como era tão bom viver e saborear a liberdade.
Um dia, acasos do
destino, encontrei um antigo companheiro do liceu. Rapaz esperto,
ministeriável, de modos polidos, com duas licenciaturas em tonterias e uma pós-
graduação em dislates que se alongou num discurso bolorento, onde misturou as
esperanças de D. Sebastião com as memórias do Marquês e as saudades mal
disfarçadas a respeito de um velho professor que caiu da cadeira. Poderia
contrariar aquele incêndio de palavras com as lágrimas das mães e viúvas, dos
soldadinhos que nunca voltaram. Com a fome e as praças de jorna cheias de uma
gente madura que resistiu e lutou. Também me lembrei do Tarrafal, das mordaças
e algemas e do lápis azul do censor, enquanto ele esgrimia argumentos e
golpeava num entusiasmo que lhe fazia corar o rosto, “os motins” que não ousava
compreender.
E de repente veio-me à lembrança uma frase muito simples que
ouvi à colega Mercedes e segredei-lhe:
“ Abril já nos trouxe
tantas coisas boas! “
Foi o suficiente para me voltar as costas e afastar-se em passo
apressado, virando à direita. Eu segui, em sentido contrário, contra o vento agitado
e uma chuva miúda que ensopava os ossos e me fazia recordar outra quinta-feira,
já muito distante.
CRÓNICAS DO ALTO DA VILA
04.04.2018
(foto: António Caeiro)
(foto: António Caeiro)
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