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terça-feira, 31 de agosto de 2021
quinta-feira, 17 de maio de 2018
Crónicas do Alto da Vila | por Manuel Manços Assunção Pedro | 16.05.2018
Ter a sorte em ser oriundo duma aldeia, onde
as suas chaminés despontam, como pináculos na aridez da planície alentejana;
defender com garra as suas origens; admitir com satisfação que o tratem por
“chaparro” e afirmar, sem embargos de voz, que sente orgulho em pertencer ao
clã alentejano, entre outras características, não será para todos, porque contém
muita responsabilidade agregada e tem, também, muito que se lhe diga... no
entanto, quem assim proceder, sujeita-se a bastos comentários de índole, nem
sempre agradáveis, de escutar e algumas vezes, engendrados e ditos por
“irmãos”, também eles com origem na “Pátria Alentejana”.
O tipo de comentários que refiro, acredito
que, somente, terão origem na ignorância, má fé e na “dor de corno”, ou seja,
na inveja, porque gente do referido calibre, nasce e espalha-se como a “grama”,
residindo em todas as raças e em todas as galáxias. Alguns, somente, porque
vivem loucos, abraçados a um “canudo”, sabe Deus como o teriam adquirido,
julgam-se os mais bafejados pela sabedoria e pela sorte, mas dada a sua
auto-confiança, em demasia, costumam ser os que mais fracassam. Em muitos
aspectos, também lhes poderei chamar os “empata...”, que não fazem, não querem
fazer e têm raiva que os outros façam...
O
Alentejo sempre sobressaiu por ser uma região de características aprasíveis, muito
próprias, no entanto, contrariando o que referi, lá deixei a minha aldeia, em
pleno “campo aberto”, e os conhecimentos que eu trouxe, eram inferiores (em
quantidade e em qualidade) aos que hoje possuo, mas com sacrifício adquiri. Não
tinha ainda dezoito anos, decidi partir, como tantos outros vieram, mas sou
sincero, estranhei muito por ser forçado a ter de deixar os meus pais e o
ambiente saudavel, desafogado e bom que me permitia mover livremente, e o
Alentejo proporcionava, para me ir encafuar entre as quatro paredes duma
Repartição Publica, movido por iluzões, sonhos e ambições de juventude, que me
obrigaram a enveredar pelo referido caminho. Os “sonhos bons”, que me povoavam
a memória, de dia e de noite, quase se transformaram
em tragédia e tornou-se demasiado penoso e evidente, o facto de eu ter de abandonar
a minha aldeia, que para além de casas térreas, de um só piso, encavalitadas
nas ruas estreitas pouco mais tinha para me dar, no entanto “conservava” a
taberna do meu avô, que foi uma escola para mim, onde eu me “deliciava”
servindo vinho, às rodadas, ao balcão e cantava as “nossas modas” com os adultos.
Reguengos e as suas gentes também vieram comigo, na bagagem da minha lembrança,
como um postal multicolor de amizade.
Nada me fazia parar e eu tinha consciência
que iria dar um passo muito arriscado. Assim, de noite, a ver brilhar as
estrelas por entre as telhas, aconselhava-me com a minha figueira, que ao lado tapava
metade do telhado da despensa onde eu dormia e dizia: “Vai ao teu destino e vai
cantar que é o que te levará a fazer as maiores maluquices!”.
E
o dia aprasado chegou esbaforido e eu parti no comboío, que passava no apeadeiro
da minha terra, onde familiares meus se despediram de mim, de lágrima no olho,
enquanto eu me queria mostrar alegre, mas por dentro estava mais negro que o
chapeu que o meu pai usava na cabeça. Creio que o êxodo, não foi tão penoso e
sufocante, para os hebreus.
Passados que são estes anos, concluo que,
de certa forma, valeu a pena porque, lamentavelmente, se tivesse ficado “retido”
na minha Terra, não desenvolveria funções, nem tarefas, que desempenho, actualmente,
na “grande cidade”, mas foi somente à custa de muito sofrimento psicológico,
repito, e de muita saudade, do “bom” que deixei no Alentejo, de que eram, ainda,
testemunhas bocados da minha infânca, que haviam sobrado.
Levantar de madrugada, correr para o
emprego, por entre um ror de gente e caras estranhas, e à noite enveredar pelo
caminho inverso, e depois jantar e a seguir ir a pé e a correr para um Externato,
onde “desenvolvia capacidades intelectuais, através dos livros que ia adquirindo,
para o efeito”, e mais uma vez tiveram de ser os meus pais a ajudar, porque, o vencimento de funcionário público,
não chegava para comprar e “dar milho às gaivotas, no Tejo” e não havia ajudas
para minguém, mas devia ter havido, porque manter um emprego de dia e ter de ir
estudar à noite, tornou-se sempre dispendioso,
em todos os aspectos, físicos, psicológicos e monetários.
Entre os muitos entraves com que deparei, foi
a nível linguístico, mas comecei a verificar que o vocabulário e a forma de me
exprimir chamavam a atenção de cidadãos que decidiam depois entabular conversas
sobre o Alentejo e suas características e enquanto falavamos e eu “me distraía”
do local onde me encontrava faziam-me sentir na minha própria Terra e com a
minha gente, a pontos de alguém me dizer, em uma ocasião, que eu teria de elaborar
um dicionário de “Alentejanez”, para que pudessemos dialogar, mas não chegou a
ser preciso.
À medida que o tempo passava, e eu me ia
adaptando ao novo ambiente, fazendo novas amizades, algumas ganharam a minha confiança
e numa forma carinhosa, em vez do meu próprio nome “desataram” a tratar-me por
“chaparro”, que em vez de aborrecer, fazia crescer o meu orgulho de alentejano
e recordar a árvore preciosa que sempre será um icone no grande orgulho
alentejano, porque dava e continua a dar sombra a quem tanto precisa de se
abrigar, quer de verão, quer no Inverno. Para além das “boletas” que eram
muitas vezes a base da alimentação dos suinos, mas que eu também gostava de
“trincar”, cruas ou assadas. Muitas eram e continuam a ser ainda melhores e
mais saborosas que as castanhas.
Claro que, na cidade, também havia aqueles que se esforçavam para
aborrecerem o alentejano, como falavam
mal dos alentejanos, em geral, enquanto engendravam anedotas, na maioria das
vezes sem graça, e contadas para nos “rebaixar”, mas normalmente, quem ficava a
perder eram sempre eles porque eu, conhecedor dos costumes das suas origens também
os “atacava”.
Como
era bom observador e tive experiência nos campos do Alentejo, ainda gosto de
escrever sobre o que constatei e passei na minha preciosa juventude, na “Pátria
alentejana” e sobre as suas gentes. E, claro, para ser sincero e escrever as
verdades continuo a descrever o que vi e vivi, havendo pessoas que lêem e
relevam o que escrevo porque sem embargos continuo a relevar e a enaltecer factos
e ocorrências que “outros esconderiam”, por vergonha, porque nascer e ser
criado na pobreza, que o campo sempre ofereceu nunca foi facil, com o bem
precioso que é a liberdade. Infelizmente, pressinto que, para alguns, falarem sobre
as lides do campo sentem que será o mesmo que se rebaixarem perante a pobreza em
que um dia terão vivido, como aquele alentejano que veio à cidade e quando regressou
à sua terra já não sabia o que era um ancinho. Mas quando o pisou e levou com o
cabo na cabeça soube dizer áh, incinho dum cabrão, que mos ias partindo...
CRÓNICAS DO ALTO DA VILA
16.05.2018 - a partir de texto de 2017
(fotografia: António Caeiro)
(fotografia: António Caeiro)
quarta-feira, 4 de abril de 2018
Crónicas do Alto da Vila | por Luís Filipe Marcão | 04.04.2018
Percebo hoje a dificuldade de escrever sobre um tema quando, por
falta do mesmo, a criatividade fica encalhada e perdida diante do deserto da
folha de papel ou frente ao monitor. Lembro-me dos tempos do secundário em que
encolhido e expectante aguardava o anúncio da redacção.
Conjecturava hipóteses. Talvez sobre as estações do ano e as
suas incidências nos estados de alma? Os últimos concertos dos Beatles? Quem
sabe, um tema de história local ou os sonhos e projectos de cada um daqueles
futuros engenheiros, arquitectos, cientistas? E porque não, uma carta de amor? Daquelas
que o Fernando Pessoa achava ridículas? Até já tinha mentalmente alinhado
algumas frases envoltas de romantismo, inspiradas na pequena, de olhos verdes e
cabelos loiros, que se sentava dois lugares à frente, do lado oposto.
Qualquer tema nos
serviria para, em vinte ou trinta linhas, nos sujeitarmos aos seis valores da
composição, mas naquela manhã de Abril com inusitada e atrevida surpresa, a
professora anunciou, olhando a turma por cima dos óculos:
- Livre! Tema livre! Percebem?
Sim Sô Tora, claro que sim. Percebemos.
Mas… aquela liberdade,
atirada assim de chofre para o meio da aula, em vez de ajudar, atrapalhava.
Talvez fosse por não estarmos habituados a ela. As palavras não saíam.
Colavam-se teimosas ao bico da esferográfica, ficavam suspensas no pensamento,
num exercício de equilibrista em corda bamba, e na maioria das vezes
estatelavam-se impotentes e sem significado, no patamar da nossa aflição.
Passado a inquietação
dos primeiros instantes repleto de falhadas tentativas, as ideias lá iam
descobrindo caminho, formando frases até ao último suspiro de alívio, rematado
com um ponto final conclusivo. Uf! Era obra. Quase vinte linhas de animada
retórica, nem o conselheiro Acácio!
Com o tempo
descobrimos como era tão bom viver e saborear a liberdade.
Um dia, acasos do
destino, encontrei um antigo companheiro do liceu. Rapaz esperto,
ministeriável, de modos polidos, com duas licenciaturas em tonterias e uma pós-
graduação em dislates que se alongou num discurso bolorento, onde misturou as
esperanças de D. Sebastião com as memórias do Marquês e as saudades mal
disfarçadas a respeito de um velho professor que caiu da cadeira. Poderia
contrariar aquele incêndio de palavras com as lágrimas das mães e viúvas, dos
soldadinhos que nunca voltaram. Com a fome e as praças de jorna cheias de uma
gente madura que resistiu e lutou. Também me lembrei do Tarrafal, das mordaças
e algemas e do lápis azul do censor, enquanto ele esgrimia argumentos e
golpeava num entusiasmo que lhe fazia corar o rosto, “os motins” que não ousava
compreender.
E de repente veio-me à lembrança uma frase muito simples que
ouvi à colega Mercedes e segredei-lhe:
“ Abril já nos trouxe
tantas coisas boas! “
Foi o suficiente para me voltar as costas e afastar-se em passo
apressado, virando à direita. Eu segui, em sentido contrário, contra o vento agitado
e uma chuva miúda que ensopava os ossos e me fazia recordar outra quinta-feira,
já muito distante.
CRÓNICAS DO ALTO DA VILA
04.04.2018
(foto: António Caeiro)
(foto: António Caeiro)
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018
Crónicas do Alto da Vila | por Manuel Manços Assunção Pedro | 01.02.2018
Manuel Manços Assunção Pedro
CRÓNICAS DO ALTO DA VILA
A LENDA DA
COBRA MOIRA
Minha terra é linda! A sua beleza de
pequena urbe infiltra-se na gente, a cada pedra que pisamos, a cada esquina que
dobramos, das ruas de casas térreas de adobe.
O seu rosto mítico, transpira odores dum
primaveril Olimpo, com características, remontando aos ancestrais tempos da
moirama. Sob um coro de cigarras, cruzam-se os cheiros das rosas e dos goivos,
com os da hortelã, da salsa e dos coentros, numa agradável e estonteante
embriaguez de ervas molhadas, em dia de grande calma. Subindo ao
"miradouro" do Monte Arriba, pequena elevação situada do lado do
nascente, vê-se aproximar o sol, vindo de muito longe, trazendo lembranças de
Espanha e das gentes do Baldio. E em frente, no lado oposto, cortando a linha
do horizonte, bem rentinha ao céu, na planura distante e multifacetada, a Serra
de Portel insinua-se majestosa no seu azul neblina. Logo abaixo, ilusoriamente,
querendo roçar--lhe o sopé despontam Montes, semeados no verde amarelado das
searas, ou no térreo castanho dos alqueives, na sua cândida brancura encimada
pelas coroas grenás dos telhados. Entre tantos, ele é o Pegeiro, parecendo uma
caixa de fósforos, e mais perto, numa colina, rodeada de verdes das culturas do
verão, o do Outeiro, fazendo destacar as suas chaminés seculares, afuniladas,
tipo caixote, e ainda mais perto, num baixio, o da Abegoaria que, orgulhoso das
suas origens por ter sido pão de tanta gente, em tempos de grande pobreza,
enriquece-nos o olhar, ofertando-nos o alto cipreste, que se avista de muito
longe abraçando a planície, nos seus inúmeros braços verdes, além do casario
apalaçado e dos contornos da fachada da sua capela, semi-escondida por
trepadeiras em flor. Este local sagrado é local de culto, de novenas e de
grande fé, onde a Senhora da Piedade, na sua angústia de mãe, acomoda no
regaço, o seu Bendito Filho agonizando, num nicho sobre o altar-mor.
Serpenteando no montado, a linha férrea,
liga ilusões das feiras de S. João, em Évora, e a de Agosto, em Reguengos. Se
tivermos a sorte dum comboio, fumegante e apitando, nos passar ao largo do
olhar, os pensamentos voam à sua frente, pousando num carrossel, ou numa rua de
feira.
Não cansa espraiar os olhos na extensa
planura, escutando o cumprimento da natureza, generosa e alegre, por nos dar frutos
de tanta beleza. Reguengos fica escondida para lá do Barro, como ilha flutuante
entre vinhedos. Ali à esquerda, semi-escondida pelos choupos e pelos chaparros
do Mouro, a Caridade, ladeada pelo Monte do Barrocal, parece querer beijar o
Monte dos Lázaros, que por sua vez, corre para a minha aldeia, através do rio
prateado da estrada nova.
Lá ao fundo, à direita, distante, sobre
uma colina, o Monte da Casa Alta refulge ombreando com Montoito, mais abaixo na
planície.
Aldeias e o Monte da Casinha não se
avistam, mas pressente-se a vida dos seus habitantes no ritual do dia a dia.
Ao lado,
logo ali à direita, sob o esvoaçar dos pássaros, o Monte do Outeiro (o
outro), parece um punhado de casas atiradas por um duende para a pequena
elevação onde foi plantado, deslumbrando-nos com a rusticidade das suas paredes
de neve, contornadas por rosas e outras flores, que formam um ramo de muitas
cores, e pelo seu aspecto de aldeia de conto de fadas.
Mais abaixo o Monte do tio Costa, um
bloco escuro que não foi caiado, desponta na paisagem com os seus altivos
eucaliptos, e ao fundo, mesmo ali à mão, como uma boneca branca de cabelos
vermelhos, surge a minha terra, pequenina, formando um contraste, onde o alvo
das paredes das casas se insinua ao rubro dos telhados e às flores que
ornamentam os poiais e os quintais.
Tem o dourado dos Outeirões, bordado de
chaparros, sobreiros e oliveiras, por trás a emoldurar as casas de portas e
janelas, pequenas e castanhas, aureoladas, normalmente, por frisos de cor azul,
ou de oca amarela.
Nos alpendres, espalhados por detrás das
habitações, ovelhas e cabras, apoiando-se nas patas traseiras, depenam com os
dentes pequenos molhos de erva, pendurados das traves dos tugúrios, enquanto os
cães, presos por correntes, brincam atirando-se aos galináceos, assustando-os e
gatos ronronando em cima de erva seca e de trapos velhos, accionam o fole das
barrigas, à sombra das oliveiras.
Dentro dos quintais há pequenos
hortejos, cercados pelos desertos acastanhados das bardas de lenha que os protegem
dos animais e demarcam do restante terreno, ofertando-nos um postal de oásis
verdes e luxuriantes.
Na rudez das pedras das ruas, no fumo
ziguezagueante que sai das chaminés, pressente-se o misticismo pairando como
asa envolvente, em todos os cantos e becos, resultante de lendas e contos,
passados de geração em geração, contados em frente do lume, nas longas e frias
noites de inverno, ou nos serões das mornas noites de estio, ás portas, sob o
manto estrelado do firmamento.
Junho, é normalmente um mês de
contrastes, em que a aliar-se ao calor do sol, deslumbrante, os campos
perfumados, dão-nos visões invulgares, ora verdes, ora dourados, ora o verde
amarelado das searas a ficarem maduras, salpicadas de papoulas e marcela, em que as festas e os rituais se repetem a
homenagear o Verão, soberano e acolhedor.
É, também, Junho, desde tempos
imemoráveis, mês de Santos Populares e de "sortes".
Na madrugada do dia de Santo António com
o galo ainda a dormir, em carroças puxadas por muares, os mancebos partem para
Redondo, a fim de, nas suas vestes de "pai Adão", serem
inspeccionados na Câmara Municipal, numa sala do primeiro andar.
Alguns sentem a doce alegria da
liberdade se a "sorte" lhes sorri, os outros, uma negra dose de
melancolia nublará os seus corações porque a "sorte" lhes abre as
portas para cumprimento do serviço militar, obrigatório. Mas, no regresso à
aldeia, todos mostram satisfação, cantando em cima das carroças, enfeitadas com
folhas de palmeiras e flores de aloendro, principalmente quando chegam perto
das jovens e das crianças, que a pé, os foram esperar às portas de Montoito.
É, o dia das "sortes", um dos
mais bonitos e felizes para aquela gente, boa e simples, onde os dias
"grandes" se contam pelos dedos, durante a sua vida de trabalho, árduo
e duro. Os pais, orgulham-se de vaidade pelos filhos, belos e robustos, que a
natureza lhes deu serem já considerados homens, estes por assim serem vistos e
sentirem toda a força e vigor da juventude; as moças por lhes oferecerem, à
noite, um bailarico e poderem visitar, de tarde, as residências deles com
determinado interesse, na companhia das mulheres mais velhas que, por tradição,
vão de casa em casa, visitar e animar as mães dos futuros soldados e, os
gaiatos, porque saem da povoação, correndo por covas e outeiros, na sua
irrequieta traquinice, escondendo-se aqui e acolá, subindo ou pendurando-se
duma árvore, no intuito de colherem uma pêra, ou uma maçã, prematuras, no seu
raiar avermelhado, que o dono não descobriu.
Já na véspera as raparigas passaram a
tarde no campo, a colher ramos de freixo e de flores campestres, para
enfeitarem os “mastaros”.
Cumprindo um ritual, que se reporta à
era mudejar, arranjam-se cinco paus, quatro com cerca da altura dum homem e
outro um pouco maior, revestem-nos daquela viçosa e bonita matéria espetando-os
depois no chão, o maior ao centro, encimado por uma bandeira de papel, e os
outros, à volta, com espaço suficiente para à noite, sob os acordes duma
concertina, dançarem na "sala de visitas da aldeia", O Largo do Poço,
até ao levantar da aurora, do dia seguinte.
Mas nem sempre o dia das “sortes” sorriu
à gente da minha terra.
Num ano em que a data se perdeu no ciclo
consecutivo do tempo, por um motivo que a ninguém já lembra, aquele dia sempre
tão festivo, foi transferido para o S. João.
Houve ainda protestos, mas rapidamente
foram sanados dado que, o S. João, é também um dos Santos mais queridos,
esquecendo-se o Povo que as lendas poderão conter algo de verídico, e o que
deveria ter sido um dia de alegria transformou-se em catástrofe, dor e
desgosto.
Como as casas da aldeia não têm
instalações sanitárias. Manda a tradição que os mancebos se libertem do suor e
do pó dos campos num tanque junto da nora do Monte Abaixo, à noitinha, fora de
olhares curiosos, na véspera do dia das "sortes".
No ano maldito, dos cinco rapazes que
deveriam apresentar-se em Redondo, apenas quatro o fizeram, porque o mais
robusto, garboso e valente jovem, por quem muitas mulheres morriam de amores,
desapareceu para nunca mais ser visto.
Era pastor, o desditoso moço que, por
motivos imprevistos, ficou retido junto do rebanho, durante a noite, apenas
podendo lavar-se, e só, na manhã do dia de má sorte.
Despontavam os primeiros raios solares,
enchendo a planície duma aguarela alaranjada quando José Lourenço, com um
arrepio, se dispunha a sair da água fresca do tanque, onde semeara pó, suor e
calor com que a noite quente de verão o bafejara, sem se ter apercebido que, a
seu lado, apenas dois, três metros, numa fenomenal metamorfose a nora se
alargou, afastando as paredes de blocos vermelhos, como pétalas de rosa
douradas a abrir-se, para dar lugar a um espectáculo inigualável, de acordo com o teor da lenda.
Nas manhãs de S. João uma figura, metade
mulher, metade cobra, reaparece junto do gargalo da nora, vinda das
profundezas, erecta e altiva, em cima de alcatruzes, resplandecentes, num
extraordinário ritual, onde seis escravos seminus, de pele escura, a esperam
perfilados, enquanto outro conduz o magnífico ginete branco que, atrelado a um
dispositivo mecânico, acciona a engrenagem.
Depois, sob um dossel de finos brocados,
impregnados de embriagantes perfumes, sentada sobre tapetes inigualáveis,
aquela mítica figura de tronco esbelto e rosto moreno, de rara beleza,
escondendo a metade réptil debaixo dum vestido comprido, azul celeste, semeado
de pedrarias, penteia os longos cabelos negros com um pente de oiro fino,
cantando hinos de perdição, que transmitem uma mensagem maldita, de Afrodite,
no intuito de atrair e despedaçar de amor e desejo o coração dos varões
possantes e viris de vinte anos.
Quando o infeliz pastor escutou os
primeiros acordes, dos sete instrumentos, tocados por igual número de escravas desnudadas,
que acompanhavam a voz da perdição, estupefacto virou a cabeça na sua direcção
fixando os olhos nos belos olhos do desejo. De seguida, incontrolável, num
impulsivo e ágil salto de felino, mostrando o corpo escultural e viril, em toda
a sua plenitude, sob os olhares cobiçosos das serviçais enleou-se loucamente no
abraço que o perdeu definitivamente e o levou para o encanto.
Ficou cego quem de longe viu e contou. E
nos dias de hoje ainda paira algum medo e terror na aldeia, até os varões de
tenra idade costumam ser avisados para nunca se aproximarem da nora, nas manhãs
de S. João, porque a "Cobra Moura" poderá surpreende-los e levá-los
para o seu palácio de oiro, onde acabará por os eliminar, na louca ânsia do
amor, tentando conceber filhos, à imagem dos homens, o que jamais acontecerá,
porque ela foi amaldiçoada.
CRÓNICAS DO ALTO DA VILA
01.02.2018 - a partir de texto de 1988
(fotografia: António Caeiro)
(fotografia: António Caeiro)
segunda-feira, 1 de janeiro de 2018
Crónicas do Alto da Vila | por Luís Filipe Marcão | 01.01.2018
Viva o Novo Ano
Não sei com que palavras irei encetar 2018. Pensei em tantas.
Cheguei aqui, a este cabeço onde se ergue Monsaraz e ao lado dos cantadores que
já fazem parte deste sítio, bebi a paisagem. Avisto a ponte qual centopeia
ligando as margens, o grande lago embalando a minha tranquilidade, mais ao
longe as terras de Espanha, mais à esquerda, lá em baixo a praia fluvial e
atrás as muralhas do castelo, a bandeira drapejando no alto da torre de menagem.
Quantos olhares seguiram o mesmo percurso?
É verdade que este
local tem uma magia própria, genius locci, espécie de termas para o espírito de
quem precisa de um pouco de inspiração ou retemperar as forças criativas. Daqui
por alguns anos outros tomarão o nosso lugar à descoberta da originalidade. Com
que palavras encetaremos 2018?
As mesmas de sempre? Paz, saúde, Amor, fraternidade? Com que
desejos vou embrulhar o novo ano? Mais justiça, mais igualdade, mais
tolerância, mais dignidade e oportunidades?
Que projectos e
intenções trazemos escondidos na manga? As tais corridinhas de manhã para
abater tecidos adiposos, o largar de vez o cigarro? O tal mealheiro conta-gotas
para imprevistos, o curso que ficou em meio, os idiomas que nunca falámos? Os
livros que continuam na estante sem ser lidos, as palavras sem-abrigo que vivem
solitárias sem o aconchego de um poema?
Recordo muitos dos
votos proclamados em datas anteriores e, no ano novo ainda a gatinhar, sempre
descobri alguma semelhança com os cadernos que utilizava nas aulas da primária.
Nas primeiras páginas tudo muito certinho, letra aprumada, folha limpa de
borrões, sem erros, numa tentativa de honesta mudança. Algumas folhas à frente,
passado o efeito psicológico do início, voltava a caligrafia irregular, as
cópias despachadas esquecidas da pontuação, o olhar reprovador da professora
inclinado sobre as evidencias da cabulice e falta de zelo.
Sempre fui um habitué
do dicionário, aquele livro volumoso que contém todos os vocábulos. Lembro-me
de gostar em particular do H talvez porque as palavras não eram assim tantas e
eu entendia que elas deveriam ter a mesma procura e importância que as outras
irmãs do alfabeto.
Para este ano de 2018 ainda a saber a
champanhe vou escolher humanização harmonia e humildade como pilares e
desígnios de novos hábitos que resgatem o homem e o transformem num hino de
alegria.
CRÓNICAS DO ALTO DA VILA
01.01.2018
(fotos: António Caeiro)
(fotos: António Caeiro)
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